Existem aquelas coisas que nos chegam da memória em inusitadas horas que não sabemos explicar.
Causam espanto, até arrepiam alguns.
A mim, impressiona e me liga a escrever aqui.
Não que eu consiga desenvolver antes um tema sobre o evento. Nem sei aonde chegar com o que posso revelar agora do lampejo de memória de hoje pela manhã... Só agora sentei ao computador mas lembrei o tema que iria escrever naquele momento do dia.
Eu, desde a primeira vez que estive a seu lado naquele ambiente, apesar dos equipamentos funcionarem provando a sua vida ali, me recusei a admitir que ele estivesse. Não era meu pai.
Eu não o sentia, me recusava a vê-lo daquele jeito.
Fui até chamado a atenção por uma das enfermeiras sobre isso.
E aquele ambiente, em outras vezes e naquela estava sempre cheio.
Leitos tomados por diversas pessoas, cada uma em sua situação de vida e rodeados de cuidados e de parentes preocupados em semblantes fechados e esperançosos.
Eu não conseguia.
Me recusava a ver meu pai - forte e cheio de vida como era - ter se entregado a ponto de estar ali deitado, entubado, sem reação.
Minha indignação foi transformada em palavras de perdão a seu lado, no seu leito. Mas eu não o sentia...
A última visita que fui estava junto com a Leila. Eu já não mais ia aquele ambiente há tempos. Só recebia notícias das pessoas que revezavam em comparecer e ver o paciente. Praxe.
Era um domingo de calor forte. O dia estava bonito e alguma coisa de alegria se fazia presente.
A Leila saiu dizendo algumas boas novas, diferentes do que estava acostumado a ouvir sempre.
Entramos no carro conversando sem aquele peso de sempre e, ao ligar o motor, o rádio do carro ligou em som bem mais alto que de meu costume, para meu espanto, numa rádio que não tinha costume de ouvir. Tocava um rock dos bons de ouvir... Pasmo, regulei o som mais baixo e dirigi.
Só fui contar a Leila quando a música acabou e estávamos fora do hospital, bem longe.
Aconteceu... Tínhamos a realidade a enfrentar. Aquela que não desejamos, esperamos ou queremos mas é certa.
Meu pai já não vivia mais naqueles aparelhos. Aos 94 anos, a saúde daquele corpo era tão forte que lutava para não ir embora... Ele não. Eu sentia.
Mas o fato que me impressionou foi encontrar a Dra no CTI para concluir os parâmetros a serem cumpridos.
O ambiente que exigia limpeza antes e entrar, roupas adequadas, que tinha muita luz, ruídos de muitos equipamentos juntos, movimentos de pessoas por todo lado agora, naquele momento, me fez paralizar... Tudo desligado, revirado, camas sem fazer, escuro e um silêncio sepulcral.
Minha mente questionou: "Onde está todo mundo?"
Meu pai foi embora, eu sabia. Mas e os outros? O que acontecera ali naquele dia?
Salvaram-se todos?
Perguntei a Dra por tamanha a minha curiosidade e a resposta foi vaga, não me convenceu.
A imagem que tinha na retina era devastadora. Como se passasse ali uma coisa assim que desligasse tudo, sujasse, desarrumasse, transformasse tudo em um caos. Um final de festa... Porque justamente naquele dia?
A sensação era de alívio e curiosidade.
Será que todos que ali estavam resolveram partir juntos, no mesmo dia?
Como disse, não senti meu pai desde a primeira vez que o vi ali.
Seu corpo forte lutava mas seu espírito bondoso já havia saído. Assim eu imaginava.
No dia que meu rádio ligou eu entendi que ele estava ali e, para confortar meu coração, saiu comigo e Leila, feliz... Não sei onde ficou. Não lembro de haver deixado de sentir os arrepios e a presença de alguém mais dentro do carro.
Imaginação ou não, não cheguei de rádio ligado ao hospital. Nunca sintonizei aquela rádio.
Acredito em anjos da guarda... Naquela noite, naquele CTI um anjo bom passou e carregou os filhos do Senhor em sua derradeira hora aqui nesta vida.
E não digo nada se meu pai não liderou a turma.