Eu estava em companhia de minha mãe em uma farmácia.
Lembro que, naquela época, numa cidade do interior, o farmacêutico "atuava" como quase um médico.
Naquele dia, além de minha mãe, lá estavam outras senhoras que aguardavam para serem "consultadas".
Havia um coleguinha que estava com um vidrinho de injeção vazio e me chamou para brincar, na calçada da farmácia que era mais alta do que a que seguia, em frente a delegacia e esse aclive era compensado por uma rampa.
Rolávamos o vidrinho um para o outro e eu fiquei do lado que dava para a rampa.
O vidrinho passou por mim, desceu a rampa, seguiu na calçada ao lado e foi parar, comigo atrás dele, entre o dorso de um pastor alemão que dormia tranquilamente e a calçada mais baixa.
Dei a volta, fiquei agachado de frente para o cão e, sem medo (talvez por ser muito novinho, talvez por ser na roça, talvez por ter em casa uma cachorrinha doce de nome Catita) peguei o vidrinho. Alguma coisa me encantou e eu quis tocar aquele pelo negro, liso e comprido... Daí eu só lembro de sua reação e do sofrimento já dentro da farmácia com tantas furadas de injeção, além da cara enfaixada como uma múmia.
Ao meu carinho de criança o pastor retribuiu com uma mordida no rosto e sua força era tamanha que jogou-me longe, o que pode ter determinado a minha "sorte". Acredito que desmaiei com a porrada.
Eu tinha 3, 4 ou 5 anos. Quem poderia precisar já não está mais aqui e eu fiz questão de não lembrar por estes tempos.
Acordei já à noite, por um murmúrio de vozes que eu conhecia em volta da cama de minha mãe. Meus primos e minhas tias foram me visitar.
Quis levantar-me, fui repreendido e senti que estava quase amordaçado pelas ataduras que cobriam todo o meu rosto em função dos pontos no lábio inferior, na face esquerda ao lado da boca e quase na têmpora esquerda, onde pegaram os dentes caninos.
O "beiço", que já era grande, ficou maior marcado pelos pontos e foi minha "vergonha" por muito tempo. As outras duas marcas até me deram um certo charme com o passar do tempo.
Com o passar do tempo também, meu irmão contou que juntou uma patota e descobriram que o cãozinho estava preso nos fundos do quintal do farmacêutico, que dava numa outra rua, sem testemunhas naqueles tempos.
Segundo ele, deram uma coça no bicho. Coitado...
Também havia um velho da cidade (acho que chamavam de "seu Dôti") que prometia toda vez que me encontrava que mataria o bicho. Ele era sério e falava sério, creio.
O Ricardo Braga, meu coleguinha da hora do acidente, relembrou o caso da última vez que estivemos juntos em sua agência de carros em Rio Bonito.
Não sei porque lembrei disso esta noite.
Talvez esteja fazendo 50 anos, quem sabe.
Essas marcas que ganhei do manto negro ficaram no meu rosto mas não me tiraram o gostar dos cães.
Tivemos alguns saudosos "amigos" que me viram crescer e depois de casado também.
Catita nos trouxe Preto, meu irmão ganhou de minha mãe a Tuka e já tinha o Pingo (esse sim era temperamental e muito fera), as duas Nachas (que me fizeram apaixonar pela raça boxer), um louco de um dálmata que não lembro o nome, o Don Juan, a Zizi e a doce Suzi.
A Suzi, a dois dias de minha mudança para um apartamento, após a morte do Don Juan, doente (ela teve uma "gravidez psicológica" empedrou os mamilos e evoluiu para cancer) sem um pelo no corpo, morreu sozinha sobre um pequeno monte de areia no quintal onde gostava de ficar.
Eu estava desmontando meu guarda-roupa e havia falado em sacrifício algumas horas antes com o veterinário que me garantiu ser sem dor.
Parece que sabia que não iria poder mais ficar conosco e que era o impedimento da hora que vivíamos.
O comportamento dela sempre foi exemplar. Uma "dama" até a hora da morte.
Cada um desses "amigos" teem muitas histórias. Vou pensar em contar qualquer hora dessas.
As marcas da alma, por incrível que possa parecer e por mais que me atormentem, não consigo escrever.
São muitas e bem maiores que as cicatrizes em meu rosto já quase apagadas.